Escrita Gourmet é um jantar às cegas que provoca os convidados a experimentar uma refeição usando mais sentidos que a visão e escrever sobre isso depois.
Escrita Gourmet: Minha experiência
Me lembro do convite que recebi para o Escrita Gourmet, um jantar que exploraria mais aguçadamente todos os sentidos.
No dia, eu cheguei atrasado e vi algumas velas sobre os degraus que levavam até a porta da casa, que estava fechada. Em dúvida de como continuar procurei pela fachada até perceber no lado esquerdo um pequeno portão social que dava para uma escadaria.
Sem pestanejar, desci por ela e encontrei uma cozinha iluminada. Sorri ao ver que o amigo que me convidara para aquele evento estava por ali, porém rapidamente, após um abraço afetuoso de cumprimento, ele me levou novamente para frente da porta vigiada pelas velinhas silenciosas.
Agitado, o segui para dentro da casa esperando um salão de festa, mas me deparei com o que pareceu ser uma antessala. Esperando ansiosamente encontrar os vários desconhecidos que deveriam estar reunidos para aquele jantar, tentei imaginar o porquê do silêncio e da pouca iluminação ali.
Para minha surpresa, meu amigo vendou meus olhos e eu comecei a suspeitar de que aquele não seria um encontro comum. Decidido a experimentar todas as sensações que poderiam surgir, confie meus passos cegos aos cuidados do seu toque cuidadoso e, posteriormente, fui guiado pelas mãos de um total desconhecido.
Foi então que, pela primeira vez, imaginei como seria o mundo para alguém que não enxerga, que constrói tudo a partir de outras percepções.
Guiaram-me até eu sentar sobre uma almofada e, ainda vendado, ouvi a trilha sonora suave que preenchia o espaço, compartilhando sua presença com o aroma de incenso e de dois narradores que guiavam meus pensamentos sugerindo a total desconexão com o mundo exterior.
Sabia que tinham pessoas ao meu redor, mas não os enxergava nem podia dizer quem eram, apenas sabia que também tinham seus olhos vendados e experimentavam um jantar cego.
O primeiro alimento que foi me entregue me causou estranheza, eu não sabia o que fazer a seguir. Instintivamente levei aquele alimento até o nariz e tentei descobrir o que era aquilo. Minhas mãos brincavam com a textura descobrindo um novo meio de “enxergar” as coisas.
Mordi aquele alimento e mastiguei cuidadosamente, permitindo meus sentidos perceberem o gosto, o aroma, a textura, o peso e o que mais eu conseguisse identificar com os meus destreinados sentidos, sempre tão dependentes da visão.
Caridosamente, eu era auxiliado por estranhos que me traziam a comida, retiravam os utensílios das minhas mãos e me orientavam sobre o que acontecia ou tinha acontecido por todo aquele jantar.
Entregue, tentei não me sentir frágil, e pensei em quantas pessoas passam por aquilo diariamente, e não apenas em um jantar.
Como se em uma meditação, aceitei os convites daqueles narradores para explorar o toque, os aromas e o todo o envolvimento que acontecia ali.
Em certo momento me senti angustiado, queria arrancar a venda que me cegava, me senti desesperado em não poder ver e controlar o que acontecia ao meu redor. Então, respirei fundo e, ignorando meus apelos controladores, apertei minhas mãos em um ato de confiança e novamente entrei no clima do ambiente.
Assumo que meu sabor favorito foi o do café, principalmente apresentado em uma nova textura, como foi. Após “experenciarmos” ele, fomos convidados a retirar nossas vendas e, quase saindo de um transe, descobri que nada ali era como eu havia criado em minha mente.
Desde os condutores daquele evento, até a estrutura física, tudo destoou da minha fértil imaginação. Foi engraçado perceber isso, mas foi mais interessante perceber como a falta de visão tinha também me despido de certas apreensões e me feito livre.
Meu querido amigo nos convidou a escrever livremente sobre essa experiência, e, sem pensar muito, peguei um papel e deixei os pensamentos fluírem livres.
Isso foi o que saiu naquele momento:
Ser livre é se propor uma disrupção que te liberte das amarras sociais, permitindo ao ser encontrar sua liberdade, sendo este o maior desafio a ser superado quando se aprende que errar é feio e que não podemos jamais nos permitir ao erro ou ao fracasso que dele é fruto e talvez único filho reconhecido. Mesmo assim, em uma noite de segunda-feira, eu mesmo me proponho e permito vendar meus olhos para o que me cerca e ali, cego, experimento o que me dão, faço o que me propõe. No começo há medo, claro, pois é o desconhecido, mas aos poucos a escuridão me faz perceber tudo aquilo para o qual eu era cego e só agora começo a ver, não no sentido da visão, esta obstruída, mas no sentido da percepção que vai além do que a retina pode capt00ar e toca no sentimento humano. Lembro que em certo momento alguém me deu um hidratante para passar nas mãos, acho que o cheiro do ambiente ficou doce, gentil eu diria, e preencheu tudo, se espalhando por todos os cantos, nos deliciando com um agradável aroma de aveia. Em minha mão, a textura se fez macia e delicada, o que acentuou ainda mais uma sensação de conforto que pairava em cada um de nós.
E assim, terminamos a noite cantando um mantra e eu saí dali calmo e em paz, esperando por mais jantares cegos, onde dançar e sorrir seja fácil e simples.
Vende seus olhos também e permita-se enxergar.
Sobre o evento
Aconteceu dia 13/10/2014 às 19h30 na Rua Laboriosa, 89
Organizado por Tales Gubes (http://talesgubes.com/) & Ninho de Escritores (http://www.ninhodeescritores.com/).